Dossiê Wellness #02
Nas redes, a legenda fala de superação. Na vida real é um empilhamento de dores, fraturas por estresse, edemas, inflamações crônicas. Tudo em nome do "eu consigo".
[PV] Essa semana passei pelo feed por uma postagem de uma pessoa de moda que adoro seguir. A foto era uma canela cheia de tapes. A legenda: “8 dias para minha 1ª maratona e as minhas canelas se cansaram antes da linha de chegada. Já tive edema ósseo, fratura por stress e a canelite já se tornou crônica. Agora ela que lute.”
Eu vejo cada vez mais pessoas postando exercícios como se fossem atletas mas são empresárias, advogadas, médicas. Todas com metas de muitos quilômetros. E me pergunto:
Até onde é bom ir com esse nível de atleta?
E quem decide isso: seu ego, seu feed ou seu tornozelo?
Na mesma timeline passei pela falando das suas conquistas, fazendo uma esteira inclinada e falando como caminhou com constância, fazendo musculação, esteira, escada… o básico bem feito. Vi também a Marina Rondinelli (médica especialista em dor crônica com reflexões maravilhosas lá na outra rede) postando como ela escolhe utilizar as escadas no hospital, andar a pé, fazer uma yoga no fim do dia… Sem sonho de troféu, sem dor que precise de fisioterapia, sem heroísmo pra ganhar curtida. E o que acontece? Os resultados aparecem também. Exames e taxas metabólicas contando uma história silenciosa de autocuidado de verdade.
Fazer o básico funciona. Funciona para quem decide treinar dentro do que cabe na vida, sem transformar cada treino numa prova de resistência do corpo (e do ego).
Atletas de meio período pagam uma conta cara. Os de alto rendimento também, mas vivem para isso, tem apoio médico, fisioterapia e acompanhamento (no mundo ideal). Enquanto isso, a pose de “maratonista lesionada” rende aplausos, textão no feed mas cobra juros: dor crônica, estresse, burnout do corpo.
No fim das contas, a pergunta que segue ecoando na minha cabeça é: até onde vale ir pra mostrar que cuida de si? E a coragem de parar antes da lesão, do cansaço extremo, do desgaste?
Talvez só saúde mesmo não dê tanta foto bonita. Não dê tanto engajamento.
De vez em quando, me pego querendo correr uma maratona. Acordar em outra vida e fazer treinos de muitos quilômetros. Sentir esse ar de superação, esse suor heróico que a gente romantiza. Mas rapidinho, com uma leve corridinha de 30 minutos deixo esse sonho partir.
Para contextualizar, o número de artroplastias de quadril (substituição por prótese) tem crescido de forma consistente no mundo todo, não só em idosos. Estudos indicam aumento entre pacientes mais jovens (40-60 anos), muitas vezes por desgaste precoce de cartilagem, lesões esportivas repetidas ou impacto excessivo sem preparo adequado.
Repito o mantra que meu personal, professor e amigo me fala constantemente. Nem todo corpo foi feito pra maratona. Nem todo joelho aguenta essa intensidade de pancada. E, spoiler: tem muito corpo jovem virando cliente de ortopedista cedo demais. Eu sigo querendo ser uma velhinha atlética mas esse exagero nas redes tem me dado muita angústia.
Eu, Paula, tenho o mesmo personal há 27 anos (taurina né). Marquinhos já me aturou em diferentes fases e personalidades. Já fiz aula às seis da manhã, às nove da noite, às quatro da tarde. Já fiz online antes de virar moda/pandemia. O Marquinhos me ensinou a respeitar o meu corpo quando eu só pensava em magreza. Me explicou sobre a minha composição corporal, a minha frouxidão ligamentar, fizemos muito trabalho de força quando virei mãe e ficava toda entrevada segurando meus filhos e agora faço uma aulinha básica para preservar minha massa magra nesse período 40+. Eu invento outras coisas (pilates, velocity, yoga..) mas não largo meu treininho com ele.
Por conta do meu trabalho e na mesma temática, superação, conquistas e bem-estar acompanho a Manu Cit. Uma blogueira que é uma grande influência para as adolescentes.
Um breve resumo: Manu é uma influenciadora digital brasileira conhecida por seu trabalho no nicho fitness e lifestyle. Ela ganhou destaque nas redes sociais, como TikTok e Instagram, compartilhando sua rotina repleta de dicas de exercícios físicos, saúde, produtividade e autodesenvolvimento. Também aborda temas como saúde mental e os desafios de equilibrar uma carreira digital com expectativas pessoais. Manu era estudante de Medicina na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mas decidiu abandonar o curso devido às dificuldades de conciliar os estudos com sua carreira digital e também aos desafios que enfrentou no ambiente acadêmico “hostil”. Essa decisão gerou uma comoção entre as “adolês”, com muitas críticas, mas também com muito apoio de sua comunidade digital. Foi uma profusão de tiktokers avaliando o futuro e a decisão da Manu. Ela se tornou um exemplo de alguém que escolheu seguir sua paixão, mesmo contra as expectativas da sociedade. Tenho muitas pacientes devotas da Manu.
A Disney do Wellness (só que não)
Voltando à timeline, vejo Manu com seus 1,7 milhões de seguidores no TikTok passeando pela Naturaltech 2025 e apelidada carinhosamente por ela de “a Disney do Wellness”. Nos stories, Manu exibe orgulhosa os stands das marcas que a patrocinam e faz fila pra mostrar também outros ultraprocessados vendidos como se fossem poções mágicas para sua performance máxima. Tudo com brindes, muitas selfies, QR code para cupons exclusivos, shots de cafeína grátis e muito storytelling de “produtos que vão mudar sua vida, aumentar sua performance, melhorar sua produtividade e o que mais a indústria criar.”
Aqui a influência da Manu vai muito além de selfies na feira: são suplementos, gummies de creatina, e uma legião de adolescentes seguindo à risca sua dieta, seus treinos, seus devocionais matinais, suas “regras de autocuidado”.
Não é que todo suplemento seja vilão. Alguns têm seu lugar, quando são necessários, bem orientados, com base em exames, avaliação individual. Mas quando vira moda tomar de tudo, quando cada potinho vira um talismã de disciplina é fácil esquecer o básico: o corpo não precisa de tanto. Precisa de comida, sono, exercício, hidratação e, se for o caso, o suplemento certo, na dose certa, na hora certa.
Vale sempre perguntar: Eu preciso mesmo disso? Ou tô tomando porque fulana toma, porque vi no reels, porque parece que todo mundo faz?
A verdade? Estar na média faz milagres
Sem fanatismo, sem legenda de superação, sem cápsula milagrosa.
Constância, paciência, comida de verdade, descanso. A saúde silenciosa não rende curtida, mas te faz percorrer caminhos mais longos e com menos dor a longo prazo. Essa edição não quer te convencer a nada. Quer apenas lembrar que existe vida fora dos stories de lesão, das fitas na canela, das sessões de fisioterapia que poderiam nem ser necessárias, dos milhares de suplementos ultraprocessados e gummies.
No fim, cada um escolhe o caminho que faz sentido: o da maratona, o da escada do prédio, o da caminhada com o cachorro, o da aula cedo ou tarde, o da paciência e amor ao próprio corpo.
E que a gente saiba respeitar esse caminho.
Com tropeços, pausas, recomeços e, acima de tudo, sem transformar cuidado em castigo.
Até a próxima,
PV
[LZ] Já compartilhei por aqui a minha trajetória de emagrecimento e a construção do hábito de praticar atividade física em edições anteriores, como a "Feito é melhor que perfeito? e Como cumprir nossas metas em 2024. Eu tenho muito orgulho da constância nos exercícios, o que considero ser a chave do sucesso no meu caso. É com muita alegria que consegui estabelecer uma constância na prática de exercícios após a mudança e que tenho comprometimento para encarar como um compromisso diário que fiz comigo mesma. Eu gosto de utilizar o app Strides para monitorar a assiduidade da ginástica. Acho lindo demais marcar as bolinhas e bater minha meta, que é fazer alguma atividade física pelo menos 5 vezes por semana. A nova rotina inclui aulas de tênis que eu nunca tinha feito antes e estou adorando! Tenho feito musculação 3 vezes por semana, aulas de tênis duas ou três vezes na semana e quando não consigo ir a alguma das aulas, faço uma bicicleta para me movimentar. O mais impressionante do gráfico abaixo é o orgulho que sinto ao ver que estou a 16 semanas consecutivas batendo a meta!
Um beijo, gente bonita!
Lu
Corro desde 2008, fiz a 1a maratona em 2013. Seis anos, entre 5, 10, 21k até chegar preparada na maratona. Não só nos meses antes, meu corpo tinha anos de estrutura para aguentar uma prova dessa, que na época ainda era uma "entidade" e não uma commodity, como é hoje. As corridas estão cada vez mais lotadas...de pessoas claramente sem preparo algum, gastando os tubos com tênis, suplementos, gel etc quando nem o básico, que é comer comida e treinar com constância elas fazem.
Que edição importante e valiosa. Eu não quero julgar ninguém, mas fico genuinamente preocupada da maratona como mais uma moda, como se fosse só vestir um jeans justo, com pessoas se machucando e, pior, ignorando o acompanhamento médico – temos visto alguns resultados tristes disto.
E mais preocupada ainda da influência vir de vozes inexperientes e, por isso, com pouco preparo e cortéx pré-frontal para avaliar a responsabilidade de influenciar. Pessoas deslumbradas com números (em seguidores e em cifras) e nada interessadas nas pessoas atrás dos números e nas saúdes atrás das cifras).
Eu não sei qual será a conta de médio prazo, mas é um boleto que muita gente não terá como ignorar. E tudo pela pressa, pelo que reluz e fica bem no clique, porque, no fundo, a linha de chegada está atrás do básico e simples feito com consciência.